A Sala Livre

JMTrevisan
3 min readJul 4, 2023

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A traseira de um carro, com as lanternas acesas, no escuro de alguma estrada ou viela de condomínio.

Primeiro eles tiraram nossos carros. Ninguém sabe como.

Eduardo insistiu por um bom tempo que ouviu o portão elétrico abrir sem ser forçado, depois o ronco do motor partindo rápido pelas ruas do condomínio fechado até sumir pela estrada. Diz que olhou pela janela e viu as luzinhas traseiras desaparecerem ao longe. O que sempre pareceu impossível, porque aquele tipo de portão só existia na Europa, e o carro só ligava com a digital dele.

Então foram as reformas. Percebi quando as marteladas pararam no andar de cima, depois no de baixo, e quando deixei de ouvir qualquer serra ou makita ao longe.

“É como se todos os passarinhos tivessem parado de cantar”, disse minha esposa, Vera, assustada.

Os escritórios esvaziaram, porque não havia ninguém para manter tudo arrumado ou exercer as funções mais básicas. Quanto mais baixa a importância do setor, mais vazio.

As agências cegaram suas câmeras e as TVs cancelaram seus programas. Sem ninguém para influenciar com suas cores e slogans, não havia mais motivo para torrar o que ainda existia de energia disponível. Quando a internet se foi de vez, celulares viraram apoios para copos ou, depois, pesadas armas de arremesso.

Porque quando a bolsa de valores perdeu seu sentido todo mundo entendeu que era realmente sério. Que engrenagens sem dentes não serviam para nada. A frase nem é minha. Lara, a última coach do bairro, foi quem gritou a plenos pulmões, implorando por atenção em sua última palestra não solicitada. Era difícil convencer alguém a urrar como um urso ou se olhar no espelho em auto-admiração quando faltava comida.

Não demorou para o pessoal começar a se organizar.

Os publicitários e produtores da Vila Madalena. Os cryptobros da Faria Lima. Os donos de lojas da Oscar Freire. Os empresários da Avenida Paulista. Cada um de nós munido de nossas armas garantidas pela lei, por Deus e pelo homem, prontos para lutar pelo que era nosso.

Lara teve a cabeça esmagada por um estagiário que usava um grampeador como soco inglês, na Rua Purpurina. Vera caiu no vão da linha amarela e foi chutada até morrer por jovens vestidos e pintados de laranja da cabeça aos pés. Se escapei, foi por mérito.

Pode fazer pouco sentido lutarmos uns contra os outros, mas faz menos sentido ainda lutar pelo que eles têm. Ninguém quer os campos, as feiras, as músicas péssimas. Queremos nossos prédios e casas planejadas. Queremos nossas piscinas na sacada, nossas salas fitness, nossas saunas, nossos living spaces, churrasqueiras e spas. Nossa conquista. Nossos monumentos. Nosso legado.

Eduardo me ajudou a chegar em um apartamento enquanto a maior parte brigava pelos condomínios fechados. São vinte e sete metros quadrados bem decorados, tendência nos últimos anos na cidade. Ninguém quer um lugar grande demais para limpar.

Infelizmente não era o suficiente para nós dois. Eduardo teve que se contentar com o fosso do elevador. Eu não podia arriscar que mudasse de ideia.

Tenho três quadros do Romero Brito, um minibar com garrafas de uísque, um sofá de dois lugares e um Playstation 5. Tem poucos jogos mas eu me viro.

São vinte e sete metros quadrados, quase uma sala, mas está livre e é minha. Meu reino. Survival of the fittest.

Tenho tudo o que preciso. Tudo o que posso querer.

Por enquanto.

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JMTrevisan

Co-autor de Tormenta, tradutor da revista Rolling Stone, Gerente de Comunicação da Jambô Editora e roteirista de @LeddHQ. http://jamboeditora.com.br/manga/ledd/