Café

JMTrevisan
4 min readOct 24, 2020

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Em conversas de sala, em que amigas visitavam e eu ainda era criança ou um jovem adolescente, minha mãe me elogiava. Ela dizia: “O Mauro sempre foi tão bonzinho, sempre tão obediente. Quando ele era bebê, eu colocava ele na mesa para trocar as fraldas e dizia ‘Não se mexe que a mamãe já volta’, e ia pegar as coisas. E ele ficava ali, paradinho, durinho, sem mover um músculo”.

Hoje, depois de sete meses trancado em casa, observando os mais rígidos protocolos de prevenção ao corona vírus, decidi sair para tomar um café. Não em algum lugar distante, outro bairro ou algo assim. Na padaria perto de casa mesmo. Do outro lado da rua, basicamente.

Fazer isso era quase uma tradição minha e da Camila, minha esposa. Muitas e muitas vezes, em vez de almoçar, pegavamos nossas coisas e íamos para a padaria. Eu levava meu Kindle ou algum livro, ela levava o celular. Eu pedia um café, um pão na chapa, ela pedia alguma outra coisa, e a gente ficava lá, sentado, vendo as pessoas a caminho do parque, comentando alguma bobagem ou em silêncio lendo.

Era uma de nossas poucas “atividades” ao ar livre juntos. Sou caseiro, sempre fui. Trabalho em casa, jogo videogame, vejo séries, nasci paulistano então vou ao shopping passear. Não que a Camila não faça tudo isso, mas ela ainda tinha o costume de alugar uma bicicleta e sair pedalando por aí para arejar a cabeça. No fim, o café na padaria era a única hora em que a gente convergia para fora de casa sem teto nenhum em cima.

Faz algumas semanas eu disse para ela “Não sei se aguento muito mais tempo”. Perceba, em março, quando tudo começou e previsões otimistas falavam em normalidade, eu disse para mais de uma pessoa: “Esqueçam 2020. O ano acabou”. Por, ainda bem, ter uma percepção de mundo que não muge, eu lia, aprendia, percebia e via o que era claro para todos os que partilhavam do mesmo que eu: estava só começando. Então, aqui em casa, internamente, já tínhamos na cabeça um prazo que ia até dezembro. Imaginávamos que o mundo andaria até lá e que nenhuma força tacanha que nos governasse conseguiria manter suas garras tão firmes. Recentemente dei conta que posso estar errado. E ao perceber que podia estar errado e que o prazo podia ser mais longo, meu muro interno começou a rachar.

Depois do “Não sei se aguento mais tempo” veio uma crise de asma. Não uma crise de asma, na verdade. A mãe de todas as crises de asma. Disse para todo mundo que não me lembrava de ter ficado daquele jeito, sem ar, curvado, ofegante, no mínimo nos últimos 15 anos. Nem na época de fumante. Era um chute, mas daqueles que parecem destinados a entrar no ângulo. Ontem retornei à pneumologista depois de 15 dias de tratamento, muito melhor, e ela disse “Não me lembro de ter visto um asmático entrar no meu consultório no estado em que você entrou”. A bola entrou na gaveta. O muro tinha despencado e eu nem tinha percebido.

Esse tipo de coisa não pode passar batida. A gente aprende isso na terapia sem que a terapeuta ensine. Qualquer sinal de perigo é indicativo de que alguma mudança voluntária precisa acontecer. Pedi um alívio no trabalho, passei a me esforçar para fazer as coisas de um jeito mais leve. Me preocupar menos, ainda que a minha preocupação seja sinônimo de intensidade e a intensidade tenha me trazido muita coisa boa. Então veio o café.

Ali na padaria todo mundo obedece aos tão flexíveis protocolos à risca. São só três funcionários, ninguém entra sem máscara. As mesas de dentro são espaçadas e limpas com álcool cada vez que um cliente sai. Nas mesas do lado de fora acaba tudo sendo menos rígido, mas cabe aí a responsabilidade de cada um. Fiquei em uma mesa do lado de dentro.

Pedi um espresso duplo, uma água gelada sem gás, um pão na chapa. Levei meu Kindle. Não havia a Camila, mas já era algo. Tirei a máscara, coloquei no bolso e a lufada de normalidade me preencheu no primeiro gole.

Olhei para baixo e vi minhas pernas, longe de encostar em qualquer coisa. A mão livre sempre na coxa, longe da mesa. O corpo no assento, ajustado o suficiente para apoiar na cadeira só o suficiente para ficar equilibrado. Sem mover um músculo que não precisasse ser mexido.

Tão bonzinho o Mauro, disse minha mãe em algum lugar, sempre tão obediente.

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JMTrevisan

Co-autor de Tormenta, tradutor da revista Rolling Stone, Gerente de Comunicação da Jambô Editora e roteirista de @LeddHQ. http://jamboeditora.com.br/manga/ledd/