Certo Mesmo Está Alan Moore!

Ou: Por que Alan Moore Odeia Filmes Baseados em Obras Dele (e tem razão para isso)!

JMTrevisan
8 min readOct 6, 2015

Não lembro de uma época em que Moore não tenha sido tratado como gênio.

Acho que a primeira coisa que li dele foi Monstro do Pântano, quando eu era bem moleque. Moleque o suficiente, aliás, para não entender nem metade das referências, da profundidade ou da importância dos roteiros do cara. Mas eu insistia, porque estudava quadrinhos e era unânime a opinião de que ele era foda. E era mesmo.

Aos poucos, Moore foi — segundo parte dos fãs e nerds — passando de gênio para “gênio e chato”. “Gênio e mala”. “Gênio e reclamão”. O motivo? Sua aversão às adaptações cinematográficas de suas obras.

Vai ter a cara de pau de dizer que gostou? :)

Moore nunca gostou de ver seus personagens na telona, e poucas vezes teve recursos para impedir que isso acontecesse, uma vez que o grosso do que produziu pertence a editoras, não a ele. E nem sei se impediria.

Ao invés disso, o que ele costuma fazer é exigir a retirada de seu nome dos créditos e o repasse da grana a que teria direito para o parceiro da obra original. Como o desenhista, por exemplo. Foi assim em V de Vingança e Watchmen, só para citar dois.

E acho do caralho. Você se mantém de fora de algo de que não faz questão de participar e não impede que outras pessoas envolvidas ganhem sua grana. É justo, por um lado.

Ainda assim há quem ache Moore um chato. Preciosista. Incapaz de entender as particularidades de se ter uma mesma história em duas mídias. Um estraga prazeres que não pensa na felicidade dos fãs.

Well, vocês estão errados. Certo mesmo está Alan Moore.

PARENTESIS: FÃ NÃO É DONO

Eu não sei quando surgiu.

Talvez esteja aí desde sempre ou desde que os Beatles estouraram e as pessoas passaram a achar que sabiam mais sobre os discos deles do que eles próprios, mas o fato é que o fã tem — cada vez mais — um senso de propriedade sobre o que ele gosta. E, enquanto autor, acho isso meio errado.

Perceba, o fã tem o direito de encarnar o personagem. De amar, chorar, odiar. De transformar em outra coisa, como fizeram com a máscara de Guy Fawkes. Tem o direito de não gostar do que o autor decide fazer, de parar de comprar, de convencer os outros a não comprar também. Mas precisa reconhecer o direito do autor sobre a própria obra.

George Lucas é um que sofre com isso. Há quem renegue até a morte as versões remasterizadas e consideram-nas uma afronta ao que Star Wars representa. Eu discordo.

Quem teve a ideia original lá em 70 e pouco foi o Lucas. Quem investiu grana e tempo foi ele. Quem arriscou o próprio rabo foi ele. Quem sentou a bunda na cadeira e trabalhou igual um cavalo foi ele. Pagar ingresso e gastar dinheiro em bonequinhos, navinhas e sabres de luz não te dá direito a saber mais que o dono da franquia. Você pode não gostar, mas precisa respeitar.

O mesmo vale para Moore e seus quadrinhos. Não é “inadmissível” que ele não aceite os filmes. Nem chatice. É direito dele como autor.

No caso do Moore, entretanto, não é só isso.

ARTE SEQUENCIAL E O CASO WATCHMEN

Moore não é só roteirista, é um entusiasta dos quadrinhos. Um daqueles caras que tentam extrair o máximo da mídia escolhida. Do tipo que fundamenta as escolhas que faz na página.

Em 1985 Moore escreveu uma série de textos sobre seu método de criação e roteiro, publicados então no Comics Journal e relançados em formato encadernado em 2003. Esse texto caiu na minha mão no começo da década de 90 e serviu de base para muito do meu conhecimento de roteiro no início de carreira.

Acredito que Moore tenha mudado de ideia sobre muitas coisas escritas ali, mas uma observação jamais me saiu da cabeça e creio que seja fundamental para entender a rejeição dele aos filmes. Cito:

“No esforço de definir os quadrinhos, muitos autores têm arriscado pouco mais que comparações nos desenhos, entre uma técnica e outra, mais grosseiramente aceitáveis como forma de arte.(…) Enquanto o pensamento cinematográfico tem, sem sombra de dúvida, produzido muitos dos melhores trabalhos em quadrinhos dos últimos trinta anos, eu o vejo, como modelo para basear nosso próprio meio, sendo muitas vezes limitante e restringente. Por sua vez, qualquer imitação das técnicas dos filmes através dos quadrinhos acaba perdendo, inevitavelmente, na comparação. É claro, você pode usar seqüências de cenas de forma cinematográfica para tornar seu trabalho mais envolvente e animado que o de quadrinhistas que não dominam este truque ainda, mas, no final, você acaba ficando com um filme sem som nem movimento. O uso de técnicas de cinema pode ser um avanço para as convenções de escrever e desenhar quadrinhos, mas, se estas técnicas forem encaradas como o ponto culminante ao qual a arte dos quadrinhos possa aspirar, nosso meio está condenado a ser eternamente um primo pobre da indústria cinematográfica. Isso não é bom o bastante”.

Em 2001, o site A.V. Club entrevistou Moore sobre o filme baseado em From Hell e perguntou se ele teve algum envolvimento na produção. Isso numa época em que Moore era um tanto mais otimista quanto à adaptação de sua obra:

“Não participei e foi uma decisão deliberada. Perguntaram-me se eu queria, bem no começo da produção, mas quando se trata de alguma proposta de filmar algo de minha autoria, minha resposta tem sido basicamente a mesma. Se alguém vai estripar um filho meu, prefiro que não seja eu. Além disso, não tenho interesse em escrever para o cinema. Os quadrinhos, para mim, são um campo muito mais promissor. Ainda há muito o que explorar nesse meio, enquanto o cinema, de certo modo…não sei. Filmes são uma forma maravilhosa de arte, mas não é minha favorita. Acho que não fica nem entre minhas cinco preferidas. Por isso acho melhor dedicar minha energia a uma mídia que eu entendo, gosto e pela qual sou capaz de me empolgar”.

Isso posto, Moore é o tipo de roteirista que se importa com o que só pode ser reproduzido numa página de quadrinho (há outros trechos sobre isso em On Writing e na própria entrevista citada acima), no caráter único da HQ.

Em 2005 foi lançado o último número de Promethea, série sobre ocultismo escrita por ele. Uma edição de 32 páginas não lineares, que se destacadas formavam um pôster dupla face com duas novas imagens que faziam parte da história e só poderiam ser vistas desse modo. Ou seja: uma história que só funciona em quadrinhos.

Um dos lados do poster que se forma ao se desmontar a edição 32 de Promethea

E aí chegamos em Watchmen, que é, pra mim, a teoria de Moore sobre as HQs colocada em prática em sua forma mais pura. Tudo ali é feito para extrair o máximo dos quadros, das páginas, da mídia escrita.

Se você bate o olho e só consegue pensar “Uau, essa puxada de câmera da sarjeta para o alto do prédio no início do número um foi feita para ser filmada”, tá na hora de reler a minissérie com mais atenção. Há muito mais coisa ali.

A inserção dos capítulos de Sob a Máscara, a biografia fictícia de Hollis Mason, exatamente no ponto em que foram colocados, os entediantes artigos sobre aves e, principalmente Os Contos do Cargueiro Negro, oferecem paralelos à história que reforçam a trama principal e só fazem sentido inseridos dentro desse contexto.

A própria distribuição dos quadros tem motivo de ser. Moore usa uma grade fixa de nove quadros por página, em três fileiras horizontais, a série toda. Há variações no tamanho dos quadros, mas a grade em si não muda.

A edição 5, Fearful Simmetry, fala de Rorschach, o herói perturbado que usa uma máscara de manchas simétricas como o teste psiquiatrico que lhe da nome. E a simetria vai além do título.

Cada página da história é espelhada em seu formato: a primeira com a última, e etc. As cores acompanham a degradação da relação paciente/médico, e por aí vai.

Comparação da primeira e da última pagina de Fearful Simmetry. Repare no primeiro e no último quadro.

E estou falando de apenas UM capítulo de uma série que teve doze.

Nada disso é reproduzível de maneira satisfatória na tela de cinema, justamente porque Watchmen foi escrito e desenhado para demonstrar o que só os quadrinhos são capazes de fazer. E por isso trata-se de uma série longeva e aclamada, mesmo que o leitor não se dê conta de todas as milhares de engrenagens minúsculas girando para que tudo funcione.

O tema “O que aconteceria se super-heróis existissem no mundo real e fossem tratados como tal?” é só a ponta do iceberg e, hoje, o menor dos méritos de Watchmen.

UMA NOTA SOBRE V DE VINGANÇA

Em termos técnicos de narrativa, acho V de Vingança menos complicado de se reproduzir nas telas, até por fazer parte de uma fase anterior da carreira de Moore. O forte ali é o discurso.

Li V de Vingança quando ainda era moleque, numa época em que tinha orgulho de dizer que odiava política, e fiquei fascinado. Só muito mais tarde me dei conta que havia lido um tratado sobre anarquia, sobre liberdade e sobre…política. O cerne da trama, sua razão de existir, é o conflito entre o fascismo vigente e a anarquia representada por V.

A ideia de que a Inglaterra ali retratada só chegou ao estado deplorável em que é mostrada porque cidadãos se renderam às ordens de alguém. Porque a noção de que há alguém capaz de saber o que é melhor para todo mundo — mesmo que não saiba — está tão enraizada, que cada um é incapaz de saber o que é bom para si mesmo.

O discurso de V, exaltando a Anarquia. Um dos pontos altos do quadrinho e ausente no filme.

V de Vingança, o quadrinho, sustenta que se cada um soubesse cuidar de si mesmo e zelar pelos outros, não haveria necessidade de poder centralizado.

V de Vingança, o filme, condena o fascismo, mas elege como salvadora uma democracia reformada.

Seria uma mudança menor e perdoável se o conflito original ideológico não fosse a razão de ser da obra. Mas é.

Por isso, a meu ver, o filme desmorona.

MAS EU GOSTO DOS FILMES! É SÓ OUTRA MÍDIA!

Então: você pode continuar gostando, na real. Isso não torna você um ignorante ou cancela sua carteirinha de nerd/quadrinhista. Eu mesmo gosto muito da atuação do Hugo Weaving como V.

E Watchmen talvez seja o melhor que se pode fazer com o que se tinha em mãos. É nítido o respeito que o Zack Snyder tem pelo quadrinho e eu adoro a abertura. Não é crime sentar, assistir e se divertir.

Só acho que, numa análise um pouco mais aprofundada e atenciosa, são filmes desnecessários, prejudicados justamente por forçarem a adaptação de algo que não precisava ser adaptado e que no caso de Watchmen, foi feito justamente para demonstrar que, como diz Moore, quadrinhos não precisam ser para sempre o primo pobre do cinema.

Se Alan Moore é “chato”, é porque tem embasamento para tanto.

E tá certo ele.

NOTA FINAL

Mesmo com um texto desse tamanho, a chance de eu ter sido superficial é gigante, uma vez que o assunto é complicado e denso. Abaixo seguem dois links (em inglês) de pessoas mais estudiosas e empenhadas no tema, caso alguém queira ir além do que eu escrevi.

V for Vendetta: anarchy vs. democracy

An Analysis of Watchmen: Simmetry and The Tragic Flaw

@JMTrevisan

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JMTrevisan

Co-autor de Tormenta, tradutor da revista Rolling Stone, Gerente de Comunicação da Jambô Editora e roteirista de @LeddHQ. http://jamboeditora.com.br/manga/ledd/