Pinball e Murakami

JMTrevisan
3 min readMar 10, 2021

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Como uma porção de gente no mundo, resolvi, em meio a pandemia, mudar alguns hábitos, com a ajuda da minha terapeuta e do meu psiquiatra. Acho que é uma resposta natural: se o mundo lá fora se recusa a se mover para melhor, então me movo eu.

Por conta disso, resolvi bem recentemente estabelecer uma rotina quando acordo (inspirada na do meu amigo, Marcelo Cassaro): levanto, pego meu café, minha água, minhas bolachas integrais (da minha dieta com a nutricionista), escolho um livro e sento na sala. As regras? Nada de ligar o PC ou dar qualquer olhada profunda em redes sociais antes, e durante a leitura, esquecer que o celular existe. Por último, o livro escolhido tem que ser lido até o fim, e só neste período do dia.

Parece um monte de regras arbitrárias demais, mas descobri que é assim que eu funciono no momento. Nos meus termos, mas meus termos precisam ser explicítos e respeitados à risca. Tem dado certo.

Hoje acabei de ler PINBALL, que era um débito moral pessoal. Quem me deu o livro foi meu amigo Oliver, acompanhado de uma carta das mais sensíveis, e livro dado de presente assim não pode nunca ser ignorado, embora uma porção de fatores tenha me impedido de lê-lo.

Enfim, PINBALL foi escrito por Haruki Murakami e lançado em 1980 (é seu segundo livro), um escritor japonês bastante conhecido e conceituado, com visões muito particulares do que é a arte da escrita. É cool ler Murakami, mas não é por isso que você devia ler Murakami, se é que faz sentido.

Acho que um dos grandes motivos para a leitura é que estamos todos muito acostumados com a estrutura amarrada de três atos pétreos, e viradas de trama, e plot twists finais, herdada — creio eu, na minha ignorância acadêmica — dos livros de autores norte-americanos, da Jornada do Heroi e tudo mais. Ler Murakami ou outro estrangeiro menos comum, traz um outro lado.

Porque PINBALL é tudo, menos convencional nesse sentido. Esperar acontecimentos mirabolantes ou respostas demais na trama(?) do livro, no sentido mais tradicional destes termos, é esperar demais. Acompanhar a história dos dois personagens principais (um sem nome, o outro chamado apenas de Rato) é um pouco como observar trechos da vida de uma pessoa comum, sem saber muito quais serão importantes e quais serão descartáveis. Como quando você vai na mesma padaria tomar café e encontra as mesmas pessoas conversando todos os dias. Você houve um pedaço de uma história, uma lamúria, uma confissão, um relato íntimo, mas nem todos são bombásticos ou farão diferença na vida dela. Ou na sua.

O que conta demais em favor de Murakami é que ele narra tudo com palavras certeiras, e mesmo as cenas mais banais SOAM bem. Encaixam. Parecem importantes. Mesmo que no fim, seja só um cara andando num campo de golfe abandonado com duas gêmeas, ou alguém dentro de um carro remoendo uma lembrança.

Não acho que PINBALL seja para todo mundo, não por ser difícil, mas por exigir que o leitor se desarme de todo o conhecimento prévio instintivo de estrutura, enraizado principalmente no mundo nerd, onde cada palavra precisa ser um prenúncio de um acontecimento futuro, e cada citação, um easter egg.

PINBALL deve ser lido com a tranquilidade de quem pega um ônibus sem saber para onde vai ou quanto tempo vai durar a viagem. É para quem fantasia a história ouvida de rabo de ouvido num café, mesmo sabendo que não vai ter final.

PS. pode-se encontrar na Amazon brasileira uma edição em português de PINBALL, que também contém OUÇA A CANÇÃO DO VENTO (1979), primeiro romance do autor.

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JMTrevisan

Co-autor de Tormenta, tradutor da revista Rolling Stone, Gerente de Comunicação da Jambô Editora e roteirista de @LeddHQ. http://jamboeditora.com.br/manga/ledd/