Sua Cabeça é uma Moto

JMTrevisan
5 min readDec 27, 2020

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Embora eu não tenha autoridade técnica ou acadêmica para isso, meio que trouxe para mim a tarefa de esclarecer o que é ser tratado psiquiatricamente em conjunto com terapia, sempre que posso, de acordo com a minha visão de paciente. Na dúvida entre levar a sério o que eu falo e levar a sério o que um profissional competente diz, por favor, escolha o profissional. :)

Enfim. É bizarro que em 2020 as pessoas ainda tenham tantas pré-concepções equivocadas a respeito. Alguns pensamentos contribuem para que isso aconteça:

  • Tomar remédio é sempre uma merda, e tomar remédios continuamente nunca vai ser algo visto com naturalidade. O que se imagina é que remédios são feitos para quem está doente: você toma e melhora. Fim. No tratamento psiquiátrico você toma o remédio e às vezes piora antes de melhorar, e ai precisa tomar mais remédio. Ou trocar o remédio. E quando melhora, tem que continuar tomando, às vezes em doses mais altas. E aí tem quem fique bom o suficiente para largar, acredito, e tem quem não fique e precise tomar por muito tempo. A ideia de “tomar um remédio que não extermina o problema” é difícil de aceitar se você não analisar direito.
  • A terapia ainda é algo visto com muita desconfiança. Quando eu era mais moleque, e já precisava de terapia, dizia que era estúpido pagar para ter o tipo de conversa que você podia ter com seu melhor amigo ou amiga. Uma opinião bem estúpida. Não é nem de longe a mesma coisa. Primeiro que a conversa, principalmente depois de um tempo, pode até parecer um papo casual despretensioso, mas nunca é. Lembre-se: quem está do outro lado é um(a) profissional que estudou para exercer a profissão, que sabe ler seus vacilos, suas reações, o que você diz e o que evita dizer, não com base só no que pensa, mas também no que muitas outras pessoas estudiosas constataram antes dela. Claro, o papo com o seu amigo pode ajudar, como ligar para a sua mãe perguntando qual remédio tomar no caso de uma dor também pode. Mas se o seu problema é sério, você vai no médico caso o chá da sua mãe não dê jeito. Terapia é a mesma coisa.
  • “Tratamento psiquiátrico e psicológico é coisa de maluco e você vai ser mal visto pela sociedade”. Em primeiro lugar, foda-se a sociedade. Em segundo lugar, mal visto você fica quando externa, sem poder evitar, todas as emoções e consequências de um problema mal tratado. Quase perdi meus amigos (e perdi alguns relacionamentos) por coisas que eram causadas em, sei lá, 80% pela depressão e ansiedade (os outros 20% vamos colocar na conta da idiotice da juventude e falta de experiência como ser humano que preste). O tratamento só me trouxe coisas boas. Deixar de ser imbecil também ajudou.

Com todos esses fatores e mesmo entendendo cada um deles, decidir se tratar é e vai ser sempre doloroso, como sempre vai ser admitir ter um problema. E não é só uma questão de sentar no consultório e dizer “oi, me dá remédio” ou “oi, me diz o que eu tenho”. É um efeito cascata.

Entender que eu precisava de tratamento psiquiátrico me fez concluir (com a ajuda de um amigo que já havia parado) que eu precisava parar de beber, por exemplo. Beber engatilhava minha ansiedade e minha depressão, e não adianta fazer o esforço de tomar remédio se há algo brigando com o efeito dele todo final de semana. E parei. Num país cujo motor das relações sociais é a cerveja no barzinho, é um baque terrível. Mas aí ou você faz sacrifícios, ou não funciona.

Compreender que a terapia é necessária não significa que você vai estar cem por cento preparado para encarar uma pessoa desconhecida esperando que você conte o que está sentindo. Provavelmente não vai. Na minha primeira sessão com a minha primeira terapeuta eu fui de óculos escuros e fiquei sentado sem praticamente falar nada, porque eu SABIA que precisava, mas ao mesmo tempo não ADMITIA o que tinha que fazer para que acontecesse. E mesmo quando você admite e está pronto, ainda é difícil. Meu tratamento atual começou em 2019. No fim de 2018, meu pai estava doente. Eu e a Camila íamos para São Paulo. Uma amiga me indicou a terapeuta dela e eu deixei marcada uma sessão para quando voltasse. Meu pai faleceu no fim de novembro e eu voltei destruído. Mesmo sabendo que eu precisava, mesmo marcando com antecedência, mesmo com a experiência de outros tratamentos… o começo foi difícil.

O resumo é: querer se tratar e saber que precisa se tratar é só a primeira parte de um processo muito longo, em que a paciência consigo mesmo é a principal chave. É preciso um microscópio às vezes para enxergar os progressos, mas a consciência de que eles existem precisa estar ali. A gente sempre acha que vai ser a pessoa do mundo que se recuperou de tudo tão rápido, que será estudada pelos cientistas, entrevistada pelos canais de TV, comendo bolo com a Ana Maria Braga, mas a real é que não. E entender isso é fundamental.

Na parte psiquiátrica, me parece que o remédio não está ali muito para CURAR nada. Está ali para corrigir um desequilíbrio que te impede de assimilar as coisas com clareza e tomar decisões com sobriedade. Se a ansiedade me faz imaginar 500 possibilidades diferentes para tudo o que eu faço, é óbvio que vai ser impossível que eu consiga tomar qualquer resolução sem passar por um processo torturante. Uma vez que essas possibilidades diminuam para 50, tudo se torna naturalmente mais tranquilo.

Pense assim: sua cabeça é uma moto que você não pode vender ou trocar.

A psicóloga te ajuda a pensar qual o melhor jeito de dirigir essa moto sem se espatifar no chão. O psiquiatra é um mecânico que faz ajustes nas peças da sua moto. Você não vai dirigir bem se não aprender como faz, e não vai adiantar saber como faz se a sua moto for uma porcaria. O traçado de algumas estradas vai fazer com que você mude o modo como pilota. Algumas peças vão ficar desgastadas e você vai precisar trocar. Tudo isso faz parte do jogo.

Ninguém vai conseguir fazer o melhor tempo sempre, algumas curvas vão ser mais difíceis que outras, mas hey, eu não disse que era uma corrida. Está mais para uma viagem.

Se você conseguir terminar o percurso inteiro, já está ótimo.

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JMTrevisan

Co-autor de Tormenta, tradutor da revista Rolling Stone, Gerente de Comunicação da Jambô Editora e roteirista de @LeddHQ. http://jamboeditora.com.br/manga/ledd/