UTI

JMTrevisan
4 min readMar 13, 2021

--

Valcindo levantou-se do sofá, foi até a porta onde as roupas ficavam penduradas da volta da rua, pegou suas máscaras todas num punhado e anunciou:

— Não aguento mais.

Correu até o lixo da cozinha e atirou o monte de pano — alguns estampados, outros lisos e mais puídos — , misturado às de uso cirúrgico, sem olhar para trás. Jacira levantou-se em protesto e foi recebida com um pra mim acabou. Na televisão de 50 polegadas, a repórter, mascarada, anunciava o número de mortes do segundo ano.

Sem se despedir, Valcindo pois-se para fora de casa. Respirou fundo sem impedimentos e sorriu para os outros como ele. Na esquina, um grupo num boteco tomava cerveja com a despreocupação de quem não tem medo de nada. Dionísio estava lá, camiseta verde e amarela, jogando truco, gritando alto. Valcindo puxou uma cadeira, recebeu abraços com o atraso de anos. Ganhou meia dúzia de partidas, ainda sorrindo. Tanto tempo longe e não perdeu a mão pro jogo, gargalhava Dionísio.

Lá pelas tantas, quem deu a letra foi Otávio. Tinha uma festa na casa de Joana, que tinha concorrido como senadora na eleição anterior. Tá tudo proibido, mas ela conhece gente na PM, disse. Quem vai invadir festa de senadora? E riram. Valcindo foi espremido na SUV, dividindo long necks com Sibele e Gustavo, o casal dono do boteco.

A festa era pra fora da via principal, depois de dois caminhos de terra, mas dava para ver a quantidade de carros estacionados de longe, a luz dos holofotes coloridos e o tum-tss-tum-tss do DJ vibrando as janelas da SUV.

A multidão livre se juntava pelo prazer de se juntar, se abraçando aleatoriamente e dançando. Lá pelas tantas surgiu um violão e a dona da festa subiu num palco improvisado, acompanhada do marido, para cantar os sucessos da dupla sertaneja da região. Os convidados fizeram uma roda, cantando juntos. Alguns choravam, fruto da bebida ou da emoção do contato físico, ninguém sabia. Quando o álcool já corria alto na cabeça, alguém sacou um revólver e deu três tiros para o alto em saudação. Mais seis, nove, doze seguiram. Viva Joana, bradaram.

Valcindo acordou agarrado a Sibele e Gustavo, numa cama improvisada, debaixo de uma pessegueira. Latas, garrafas e convidados caídos para todo lado, bêbados ou apenas exaustos de tanta felicidade. Quando o casal acordou e os três decidiram tomar café em uma parada de beira de estrada, Valcindo sugeriu entre um gole e outro de leite.

— Vamos ver o presidente.

A gente tem que agradecer, disse. Sem a visão dele, estariam todos ainda trancados, bitolados, a cabeça fervendo, jogando a vida fora por uma invencionice da oposição. Não há liberdade sem gratidão, falou Gustavo, citando a Bíblia. Uma lágrima escorreu de Sibele, um nó subiu pela garganta e ela só conseguiu balançar a cabeça concordando o mais forte que podia.

Foram de carro numa jornada que deixava de ser solitária quanto mais se aproximavam do palácio do governo. Tinham pego Dionísio no caminho, ele com uma badeira verde e amarela para cada um. O fluxo de carros e depois de gente, aumentando cada vez mais. Uma onda de felicidade e liberdade incontida, nas palavras filosóficas e ainda um pouco bêbadas de Gustavo.

Se ajeitaram empurrando um pouco quem estava na frente, e quando a força falhava, Sibele levantava a camiseta para mostrar o cabo da arma cromada enfiada entre o corpo e o jeans. O mar de pessoas se abria como o Mar Vermelho diante de Moisés.

O presidente surgiu não muito tempo depois, a pé, dando corridinhas curtas de atleta aposentado, calção e camiseta de time de futebol. Não fazia muito sol mas ele suava, cercado de quatro seguranças, sorrindo e acenando para quem olhasse. O povo lhe esticava a mão, e de quando em quando, ele se aproximava tocando cada um, enquanto limpava a testa, gente como a gente. Quando ele chegou perto do grupo, Dionísio incentivou Valcindo. Vai lá, a ideia foi tua.

Valcindo agarrou o braço do presidente e logo os seguranças avançaram, mas o presidente fez que não com um aceno de braço. Ele estava ali para ser recebido por seu povo. Valcindo aproximou o a boca do rosto do presidente o máximo que pode.

E tossiu. E tossiu. E tossiu quase até se curvar.

O mar de gente engolfou Valcindo de volta. O presidente limpou o rosto com a mão e prosseguiu em mais uma corridinha curta, para então voltar a cumprimentar cada um dos apoiadores, sorriso aberto.

Gustavo, Sibele e Dionísio tiraram o amigo do mundaréu e voltaram para o carro. Deve ser uma gripe, é só descansar um pouco, a gente abusou demais ontem, disse Sibele. A melhor coisa é tomar muita água, completou Gustavo.

Os quatro voltaram cantando aos berros dentro do carro. Estavam felizes e eram livres para fazer o que bem entendessem.

Mas não voltaram a se reunir.

Gustavo foi internado um dia antes de Sibele e morreu um dia depois, desocupando espaço da UTI particular. Dionísio se foi no corredor do hospital, berrando que o tratamento preventivo havia lhe sido negado.

Valcindo se enfiou em um quarto de hotel barato e pagou quinze dias adiantado, a TV ligada 24 horas por dia.

O peito subia e descia cada vez com mais dificuldade, a consciência indo e voltando, mas quando a música do plantão de notícias tocou, e o porta-voz da presidência surgiu na tela com olhos fundos e ar de pesar, ele sorriu.

E prendeu a respiração o máximo que pode.

--

--

JMTrevisan

Co-autor de Tormenta, tradutor da revista Rolling Stone, Gerente de Comunicação da Jambô Editora e roteirista de @LeddHQ. http://jamboeditora.com.br/manga/ledd/